Pollyanna (Eleanor H. Porter)


Começou com umas muletas que vieram na barrica do missionário.
Eleanor H. Porter foi uma das autoras mais marcantes da minha vida – ela criou uma menina encantadora que fez parte da minha infância, e que me ensinou coisas que eu carreguei comigo por anos; ela criou uma das histórias mais bonitas e mais emocionantes, que eu leio e releio ao longo da minha vida, e choro em cada uma delas. Pode-se dizer, de certa maneira, que Eleanor H. Porter criou a minha primeira “impossible girl”: Pollyanna. Pollyanna é uma garota daquelas que você quer ter ao lado: que te fazem rir, que te fazem se sentir melhor, e que te fazem chorar pelos motivos certos. Aquela pessoa que todo mundo deveria ter na vida.
Quando seu pai morre, as Damas da Auxiliadora mandam uma carta para Tia Polly, perguntando se ela pode acolher a menina Pollyanna em sua casa. Não por realmente querer, ou por sentir qualquer coisa pela sobrinha, Miss Polly aceita porque ela sabe que é sua obrigação – e assim que a garota loira, sardenta e tagarela aparece em sua porta, sua vida nunca mais é a mesma. Aquela casa sem graça, aquela mulher escrava dos deveres e um tanto quanto rabugenta… Pollyanna consegue driblar cada uma dessas coisas da maneira mais terna possível, com sua inocência fantástica e seu sorriso sempre presente, que transforma as pessoas a seu redor.
E seu contentamento.
O JOGO DO CONTENTE é uma das marcas mais icônicas de Pollyanna, livro lançado em 1913 e que vem recolhendo novos jogadores desde então, e é facilmente explicado: quando era uma criança, Pollyanna esperou muito por uma boneca na barrica do missionário daquele dia, mas no lugar ela encontrou muletinhas de crianças. Frustrada com as muletinhas, seu pai lhe ensinou o tão famoso jogo do contente, que consiste basicamente em encontrar um motivo para ficar contente em cada coisa que acontece. Ora, por que ao invés de lamentar as muletinhas, não ficar contente porque, na verdade, não precisa delas? Parece uma coisa razoavelmente simples, mas nem sempre jogar o jogo do contente é a coisa mais fácil do mundo, especialmente para iniciantes.
Mas essa é a filosofia de vida de Pollyanna. Ela acredita nisso tão piamente que isso define quem ela é, e a torna uma pessoa muito melhor – mais iluminada. Ela fica contente com um quartinho ruim, sem tapetes, quadros e espelhos, porque então não precisa olhar para suas sardas e pode aproveitar a bonita vista de sua janela… e Pollyanna, andando alegremente e inocentemente pela cidade, consegue fazer as mais inesperadas amizades, e conquistar um número inigualável de jogadores para o seu jogo do contente. Em alguns meses, ela está ensinando a cidade toda a ficar contente com as coisas que lhe acontecessem, mesmo que elas não pareçam boas, a princípio. E ela sai transformando vidas, tornando o mundo um lugar mais bonito, mais colorido.
Como um prisma.
Lembro-me claramente da cena dos prismas – tendo lido novamente recentemente, esse capítulo ainda estava vivo em minha memória assim que eu peguei o livro na mão, em uma edição antiguíssima exatamente como a que eu li na infância, com tradução de Monteiro Lobato. Os prismas são uma representação fortíssima do poder de Pollyanna de mudar a vida de tantas pessoas, é a materialização de tal mudança, e uma alegoria a ela mesma: o melhor de todos os prismas. Desse modo, é comum que os demais personagens estejam engasgados, com a mão na garganta, ou simplesmente incapazes de reprimir um soluço. Porque quem não se encantaria e não se emocionaria com as coisas mais bonitas que Pollyanna é capaz de falar em toda sua pureza de coração? Tanto ensinamento junto que qualquer adulto parece não conhecer.
Temos que aprender com as crianças.
Os personagens mais marcantes dessa história, além da própria Pollyanna, mas por sua interferência em suas vidas, são a Mrs. Snow, “O Homem” – John Pendleton, o Dr. Chilton e Jimmy Bean. Mrs. Snow era uma velhinha inválida e enjoada, que nunca estava contente com nada do que tinha; John Pendleton era um homem recluso, que morava sozinho em uma grande casa e nunca conversava com ninguém; o Dr. Chilton um médico querido que perdera o amor de sua vida por causa de coisas bobas; e Jimmy Bean um garoto órfão que foge da instituição na qual morava e fica andando pelas ruas, em busca de uma casa com parentes, e alguém que cuide dele.
O que chama atenção no livro é essa capacidade belíssima de Pollyanna de deixar as pessoas ao seu redor melhores, e a maneira inocente com a qual encara a vida – é triste e bonito vê-la fazendo as pessoas engasgarem ou chorarem timidamente, tentando esconder, enquanto ela nem nota o quão grandiosos são seus ensinamentos. Ela faz isso de maneira tão natural e involuntária, que não tem como não se emocionar e não se encantar por essa garota, apaixonante, realmente o melhor dos remédios… mas o mundo é injusto. Ela, que não merecia nada daquilo, sofre um terrível acidente que a deixa de cama, com a possibilidade de nunca mais voltar a andar. E o nosso coração finalmente se parte, solidamente, no momento em que ela chora, em puro desespero, ao descobrir que pode nunca mais andar. Porque nunca a vimos chorar tão intensamente, nunca a ouvimos falar palavras tão fortes como “como eu poderei ficar contente de qualquer coisa?”
Ela, que nos ensinou o jogo do contente. E é profundamente triste que o que a deixe mais triste, de tudo, é justamente não conseguir mais jogar o jogo!
Parece-me muito humana a maneira como Eleanor H. Porter guia sua história quando está se aproximando do fim – porque mesmo com todos os ensinamentos de Pollyanna, mesmo com tudo o que ela falou, e todas as pessoas que ensinou a serem “contentes”, chegou um momento no qual ela desabou – ela deixou de jogar o Jogo do Contente, não porque não quisesse, mas porque simplesmente não lhe parecia mais possível. E ela desabou e sofreu, e chorou, exatamente como qualquer criança. E isso comoveu toda a cidade de Beldingsville, que a conhecia e a amava imensamente, fazendo filas para vê-la, levar-lhe presentes, e ensiná-la novamente a “ficar contente”. Retribuindo tudo o que ela fez por eles. EMOCIONANTE.
“Quero que a senhora faça o favor de lhe dizer que ninguém pode imaginar o bem que ela nos fez. Miss Pollyanna compreendeu muita coisa porque ia sempre lá, e compreendeu desde o começo que minha mãe era “diferente”. Mas quero agora que ela saiba como está diferente do que era – e duma diferença diferente. Eu também estou diferente e já sei jogar o jogo – um bocadinho só. […] E por isso quero que a senhora faça o favor de dizer a Miss Pollyanna que tudo de bom que aconteceu em nossa casa é só por causa dela. Vai ver que a coitadinha até fica contente de saber isso – o anjo.” (p. 162)
Miss Polly, por conta de suas proibições, é a última a entender o tal jogo do qual tanto ouvira falar naqueles dias: “Nancy, venha dizer-me o que sabe desse absurdo ‘jogo’ que anda na boca de toda gente. Que tem a minha sobrinha com ele? Por que, desde Milly Snow até Mrs. Tom Payson, mandam-lhe recados dizendo estarem ‘jogando o jogo’? Pelo que posso julgar, metade da população anda a enfeitar-se de fichus de cor clara, ou acabando com brigas de família, ou aprendendo a gostar de coisas de que não gostava antes – e tudo por causa de Pollyanna” (p. 166) O Capítulo XXVIII, O Jogo e os Jogadores, é certamente o melhor de todos, porque resume todo o livro e nos faz pensar na amplitude de todos os acontecimentos, capazes de fazer lágrimas se juntarem em meus olhos, e um nó imenso se formar na garganta, mesmo já o tendo lido inúmeras vezes. Impossível não se comover. “Quer dizer […] que desde o último junho a abençoada menina andou fazendo a cidade inteira ficar contente e agora é o contrário – a cidade inteira procura fazê-la contente.” (p. 166)
Chorei. Choramos. E como não na conversa de Nancy com tia Polly, ensinando o jogo do contente, e a alegria tão genuína da garota ao ver sua tia sabendo de tudo? “Oh, tia Polly! Descobri agora! Descobri que posso ficar contente duma coisa, que é esta: Eu não poderia ter feito o que fiz se não tivesse tido pernas!” (p. 170) Pollyanna volta a achar um motivo para ficar contente, e o sorriso volta ao rosto cheio de sardas que tanto amamos – e ela nos emociona mais uma vez, nos leva às lágrimas, com uma belíssima carta que tem a sua cara: as últimas páginas do livro são as palavras de Pollyanna à tia Polly, e ela é simplesmente ela mesma. Feliz, inocente e inigualável.
Pollyanna faz conosco o mesmo que fez por toda a cidade. E quando nosso coração está partido e nós estamos chorando por vê-la chorar, por vê-la sofrer, nós queremos fazer exatamente a mesma coisa que eles estão fazendo: chorando enquanto procuram motivos para deixá-la contente mais uma vez. porque essa é a Pollyanna que queremos, o prisma de nossas vidas. Eleanor H. Porter criou uma personagem impressionantemente marcante, ensinou coisas belíssimas, e nos comoveu com uma das mais belas histórias já escritas. Se você nunca leu Pollyanna, essa é uma leitura que eu recomendo, e que eu sempre recomendarei… porque é uma das coisas mais bonitas que já passaram pela minha vida, e uma daquelas que guardarei comigo para sempre.

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